"O Papagaio bem ensinado"
António Torrado escreveu
Cristina Malaquias ilustrou
Era um papagaio muito bem ensinado. Tinha poiso à porta de uma mercearia. De uma vez que o merceeiro estava lá para dentro, um freguês, por
pirraça, ensinou o papagaio a dizer: "Está tudo podre".
E o papagaio, de aí em diante, não disse outra coisa. O anúncio, lançado aos quatro ventos, afastava a clientela.
Mal chegava alguém ao balcão da mercearia, o papagaio avisava:
- Está tudo podre.
Ficava furioso o merceeiro:
- Este papagaio leva-me à ruína - dizia o merceeiro. - Tenho de dá-lo.
E assim fez. Deu-o a um barbeiro.
Por sinal, o tal malandrote, que convencera o papagaio a dizer "Está tudo podre", também frequentava a barbearia. À
socapa, ensinou-o a dizer: "Corta-lhe a orelha".
O papagaio passou a repetir. Por tudo e por nada, assim que o cliente se sentava na cadeira, o papagaio pedia:
- Corta-lhe a orelha.
Isto enervava o barbeiro e enervada o barbeado.
- Tenho de ver-me livre deste animal - disse o barbeiro.
E atirou-o pela janela. Mas o papagaio, que não estava habituado à liberdade, voltou a poisar no parapeito.
Isto uma, duas, três vezes, até que o barbeiro, já
exasperado com a teima do passaroco, foi buscar uma caçadeira e deu uns tiros para o ar, só para afugentá-lo, enquanto gritava:
- Rua! Rua!
O papagaio esvoaçou, a princípio atarantado, mas depressa ganhou altura e voou feliz. Passado muito tempo, foi ter a um armazém em ruínas.
Cansado da viagem, acolheu-se a um recanto protegido e adormeceu.
Ora o armazém era frequentado, à noite, por duas quadrilhas de contrabandistas e ladrões, que aí faziam as suas trocas e baldrocas.
Estavam os membros das duas quadrilhas a descarregar e a carregar fardos, quando o papagaio, acordado com o barulho, soltou o aviso, ainda trazido do sonho e das suas recordações:
- Está tudo podre.
- Quem é que disse que está tudo podre? - Perguntou o chefe de um dos bandos.
Nisto, ouviu-se uma voz a gritar:
- Corta-lhe a orelha.
Pior ainda. Armou-se uma zaragata entre os dois grupos, em que ninguém ficou de fora.
Então, o papagaio, assustado, lembrou-se dos tiros da caçadeira com que o último dono o afugentara.
Deu-lhe para reproduzi-los, enquanto imitava também a voz do barbeiro:
- Rua! Rua!
Os bandidos, assim que ouviram os disparos, saltaram de medo, supondo que era a polícia. Fugiram todos, rua fora, largando tudo.
O papagaio bem ensinado acertara, ao menos uma vez, no que dizia.
27 de Janeiro de 2009